Logo no lançamento, em 1947, causou polêmica o livro “De Caligari a Hitler”, uma história psicológica do cinema alemão, de Siegfried Kracauer. O autor apresenta a análise de uma longa lista de filmes expressionistas, que arrebataram multidões ao longo dos anos de ascensão do nazismo, para sustentar a tese de que o cinema havia desvendado e retratado um obscuro desejo da psique alemã: ter um pai autoritário no comando de seu destino. Em suma, um ditador. Hitler teria sido a resposta concreta desse anseio coletivo difuso.
Ainda hoje é controversa a tese de que o cinema seria capaz de antecipar tendências ou organizar a psicologia coletiva em histórias de ficção bem amarradas. Mas se considerarmos que ao menos existem pistas nos filmes, os que ganharam o coração do público e o respeito da crítica em 2019 indicam que as discussões sobre a economia tendem a ir muito além de dados oficiais como PIB, IPCA e índices de bolsas.
Ninguém nega que lateja uma insatisfação, já que reações pipocam pelo mundo, cada qual com o seu estopim. São chilenos incendiários contra o aumento da passagem de metrô. Barricadas equatorianas para deter o reajuste de combustíveis. Franceses parados dias a fio por discordarem da reforma da Previdência. Difícil tem sido estabelecer um fio condutor.
A safra de filmes mais comentados no ano sugere que haveria um elo entre tantos atos dispersos. “Coringa” (EUA), “Bacurau” (Brasil) e até “Parasita” (Coreia do Sul) retratam um crescente e tenso distanciamento entre a imensa parcela da população e as instituições que deveriam representá-la ou ao menos inspirá-la. O Estado, os partidos, os empresários bem sucedidos e até a mídia habitam uma bolha.
Esse grupo de esquecidos fica à margem, em resignado silêncio e submetido a provações financeiras.
Coringa é o perturbado palhaço com boas intenções na recessão de Gotham City. O caminhão leva água ao cangaço de uma Bacurau empobrecida. Os desempregados na deslumbrante Coreia do Sul forjam currículos em busca de um trabalho que lhes dê lugar ao sol no capitalismo.
E tudo seguiria o seu curso não fosse uma inesperada fagulha que os obrigasse a reagir —não raro com extrema violência.
Se Kracauer estiver certo, o recado do cinema é que o mundo seguirá concentrando renda e criando conglomerados privados, num ambiente de baixo crescimento, redução na oferta de vagas e restrição de amparo estatal. Quem cuida do dinheiro destinado à política pública precisa entender que há um limite para o sacrifício das classes médias —e que podemos estar muito perto desse limite.
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