Descrição de chapéu Análise Cenários 2019-2020

Cinema nacional brilha justo no apagar das luzes

Lá fora, a grande ameaça era a Netflix; agora, aqui, é a falta de dinheiro que faz barulho no escuro do quarto

O ano começou e termina com um monstro embaixo da cama da indústria do cinema. Lá fora, no início do ano, a grande ameaça era a Netflix. Agora, aqui, é a falta de dinheiro que faz barulho no escuro do quarto.

Cena de 'A Vida Invisível', de Karim Aïnouz
Cena do filme brasileiro ‘A Vida Invisível’, de Karim Aïnouz - Divulgação

Nas primeiras semanas do ano, pairava no ar a dúvida: daria a Academia o Oscar de melhor filme para “Roma”, de Alfonso Cuarón, produzido pela Netflix? Para muitos, a plataforma de streaming poderia ser a responsável pelo fim das salas de cinema, sendo capaz de manter o público preso ao sofá de casa. 

O prêmio não veio. Embora o filme em preto e branco, bastante distante do estilo Sessão da Tarde, tenha vencido pela fotografia, pela direção e como melhor filme estrangeiro, a principal estatueta ficou com “Green Book - O Guia”, de Peter Farrelly, para o alívio dos mais apocalípticos.

Mas não adiantou. E este ano foi o da consolidação de uma forte competição que já se anunciava: a guerra do streaming. Com o declínio da TV a cabo e a ascensão da Netflix, estava cada vez mais claro que logo surgiriam concorrentes à altura. 

A primeira a despontar havia sido a Amazon Prime Video, do grupo do portal que um dia viveu de vender livros. Mas 2019 trouxe, já quase no crepúsculo, dois grandes guerreiros às batalhas: a Apple TV e a Disney +. 

Ainda não disponível no Brasil, a plataforma de streaming da Disney retira 5 conteúdo da Netflix, como todos os produtos relacionados à saga Star Wars, os filmes e seriados de super-heróis da Marvel e, é claro, as animações Disney e Pixar.

Mas mesmo grandes nomes do cinema de telonas passaram a produzir para o streaming. Após fazer uma série de seis episódios para a Amazon, Woody Allen havia firmado um contrato com a plataforma para quatro filmes —o acordo foi quebrado pelo estúdio após voltarem à tona suspeitas de que o cineasta teria abusado sexualmente de uma filha adotiva no começo dos anos 1990; o imbróglio judicial entre Allen e Amazon só teve fim em novembro. Martin Scorsese, que afagou amigos e fez inimigos dizendo que os filmes da Marvel não são cinema, por sua vez, fez para a Netflix “O Irlandês”, superprodução com Robert De Niro e Al Pacino.

Na esteira da Netflix, que já produzia conteúdo brasileiro desde “3%” e que neste ano deu espaço para “Sintonia”, série do Kondzilla, a Amazon anunciou em dezembro séries produzidas por aqui. A esperança é que o capital dessas gigantes do audiovisual injete algum ânimo numa indústria que teme a falta de verba para continuar de pé.

O ano também foi marcado por um cerceamento do audiovisual brasileiro pelo governo Bolsonaro. O que começou com o cancelamento de um edital de séries por causa de temática LGBT virou ameaça de filtro na Ancine (Agência Nacional do Cinema) e a total paralisação de R$ 724 milhões do Fundo Sertorial do Audiovisual.

E isso no ano em que o Brasil teve enorme visibilidade em eventos internacionais. Filmes brasileiros estiveram presentes nos principais festivais ao redor do mundo, de Toronto e Veneza a Cannes, onde ganhou o prêmio do júri com “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, e o prêmio da mostra Um Certo Olhar, com “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz.

Na TV, 2019 marcou a saída da novela das nove da geladeira. Queridinha do brasileiro, a faixa conseguiu escapar da crise de audiência em que se encontrava desde o fim de “Avenida Brasil”, em 2012, e, com “A Dona do Pedaço”, fracasso de crítica e sucesso de público de Walcyr Carrasco, reencontrar seu público. O fôlego extra agora dá chance aos estreantes do horário nobre Manuela Dias e José Luiz Villamarim para testarem novos formatos visuais com “Amor de Mãe”.


CAÇA À BRUXA

A atriz Fernanda Montenegro, na época do lançamento do livro de memórias “Prólogo, Ato, Epílogo”, da editora Cia das Letras, no Rio de Janeiro
A atriz Fernanda Montenegro, na época do lançamento do livro de memórias “Prólogo, Ato, Epílogo”, da editora Cia das Letras, no Rio de Janeiro - Zô Guimarães - 18.09.2019/Folhapress

Fernanda Montenegro, que fez 90 anos em outubro, foi chamada de ‘sórdida’ por Roberto Alvim, atual secretário da Cultura, depois de posar para a capa da revista Quatro Cinco Um como uma bruxa prestes a ser queimada numa fogueira de livros, em referência aos “tempos obscuros” atuais, de acordo com a publicação.

Úrsula Passos é editora-assistente da Ilustrada

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