Descrição de chapéu Fim de ano

Deserto de sal na Bolívia é ponto alto em road trip de SP a Lima

Espelhos d'água refletem o céu ao amanhecer no Salar do Uyuni

Flavia Vitorino
Bolívia

Numa época em que tempo, emoções e relações estão escassos, uma longa viagem de carro é um luxo diferente. Todo o mundo deveria fazer uma dessas na vida.

Em 1928, três loucos brasileiros ganharam um Ford T e dirigiram do Rio a Nova York, epopeia que durou dez anos e na qual nem Henry Ford acreditou. Os caras já sabiam que a vivência é que faz um homem rico.

Espelho de água reflete as cores laranja, rosa e roxo do céu
Amanhecer no Salar - Erico Hiller

Porém, esse tipo de vivência envolve desapego. Por mais que você desenhe uma road trip e estude o percurso, não vai sair como o planejado. O posto vai fechar e você vai ficar num lugar bizarro sem combustível; o restaurante não estará aberto; a fronteira vai te segurar e você vai perder a reserva do hotel; uma manifestação vai te prender mais um dia em uma cidade. Cabe a você entender isso como experiência ou sofrimento. 

A ideia era dirigir de São Paulo até o Peru, passando por Bolívia e Chile. Ponto alto: o Salar do Uyuni, no sudoeste boliviano. Cruzar um deserto de sal com 12 mil quilômetros quadrados a 3.600 metros de altitude supera qualquer expectativa e compensa qualquer perrengue. Aquilo é tão branco e grande que pode ser visto até do espaço.

Para atravessar o deserto dirigindo, há duas opções: contratar um guia local ou ser muito bom com navegação em GPS, calibrar bem a rota e confiar no seu carro. Sei, você quer se aventurar sozinho. O problema é que vai rodar no mínimo 400 quilômetros em três dias —e não pode errar. 

Não espere ser salvo pelo celular. Até com um SIM card local, ele não funciona no Salar. Se seu carro quebrar ou você atolar (o que é muito comum), pode sentar e chorar. Não tem posto Ipiranga, não tem nenhuma vendinha. Na-da. Só paisagem.

 

E que paisagem. Uma mistura de branco com águas esverdeadas. Profusão de vulcões, ilhas de cactos, cemitério de trens, flamingos, vicunhas, lagartos, raposas…

Contratamos um guia só para fazer a travessia. Fomos em agosto, na seca, e me disseram que eu não veria os espelhos d’água do deserto, aqueles que te fazem confundir horizonte e céu. Isso é porque não conheciam Juan, guia que nos encontrou na última cidade antes da travessia. 

A cidade leva o mesmo nome do deserto: Uyuni. Ali você dorme, abastece o carro com comida e combustível (leve ao menos 60 litros a mais) e, à noite, dá um rolê pela cidadezinha boliviana de 10 mil habitantes. Dali, o plano era seguir na madrugada e fugir da rota para ver o sol nascer nas poças de água que nosso guia conseguiria achar.

Um frio de rachar a cabeça e os ossos: -15°C. Doía. Ficávamos três minutos fora do carro e cinco dentro para descongelar as mãos. Mas, quando o sol começa a pintar o céu, juro que é de chorar. Tons azulados vão se transformando em rosa, laranja, amarelo. No reflexo da água parece que você é engolido por aquele horizonte de 360º. 

Um silêncio, só quebrado pelo barulho dos passos na água que se acumula sobre o sal. Eu não sabia se estava andando ou flutuando na paisagem. Só por aquele momento, quero voltar.

Seguindo para nossa primeira noite em meio ao sal, parei o carro e desviei por cinco segundos da rota para pegar um saco plástico que avistei de longe. Abaixei para pegar e, quando levantei, vi que meu guia, que estava em outro carro, tinha ido… para qual lado? Não existe referência, todos os lados são iguais. Nos minutos em que fiquei ali esperando, me veio um frio na barriga e me lembrei de todas as histórias de gente que se perdeu no Salar. Que agonia. Claro, Juan voltou e seguimos viagem.

Após ver lagunas e vulcões, a primeira noite seria passada no meio do nada, num albergue. Esperava o pior. Sei lá, imaginei um iglu de sal com a galera junta, morrendo de frio. As histórias ouvidas eram tão exageradas que nem imaginei que haveria comidinha, banho quente, vinho (tá, o vinho nós levamos) e cama. 

Dentro do albergue, todo o mundo conversando, um de cada canto da Terra. Fora, sal e céu. E que céu. Tudo em visão full HD.

O segundo dia inteiro rodamos pelo deserto. Rodar em cima do sal é uma loucura. Se eu quisesse dirigir quilômetros de olhos fechados não acertaria absolutamente nada. A “estrada” é sempre igual, salvo uns pontos de desvio. Entre uma atoladinha e outra, nos saímos bem. Mais lagunas lindas, mais paisagens lisérgicas. E fomos parar num hotel bacana, já quase no final do Salar e na fronteira com o Chile.
Dali, seguiríamos para o Atacama, litoral do Chile e Peru, até Lima. 

Daria um livro o que vimos, o que aprendemos uns com os outros, as brigas, o choro, as risadas, as cantorias, as pessoas de cada canto inimaginável do planeta. Entramos em manifestações, subimos em caminhões, protestamos junto. Conhecemos famílias que nunca conheceram chuva. Mudamos rotas, absorvemos frustrações.

Bom, não me lembro de ter vivido e visto em outras viagens tanta coisa como nesses 17 dias de carro pela América do Sul. 

Tire sua caranga da garagem. Saia daí e vá ali ver o mundo. Ele é tão diferente quando o enxergamos de pertinho. Não tem luxo melhor que esse.

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